6 obras com narradores não confiáveis
No vasto reino da ficção, há diversos dispositivos narrativos que um autor pode utilizar para cativar seus leitores e desafiar suas percepções. Uma dessas técnicas é justamente a do narrador não confiável, um personagem complexo e muitas vezes enigmático que funciona como a lente pela qual a história é contada. No entanto, sua falta de confiabilidade adiciona uma camada de incerteza e ambiguidade à narrativa que está sendo construída.
Frequentemente utilizado em histórias contadas em primeira pessoa, o narrador não confiável não apenas cria reviravoltas e conflitos, como também leva o leitor a questionar a própria natureza da verdade e a credibilidade da narrativa. Presente tanto em clássicos quanto em obras contemporâneas, ele pode ser deliberadamente enganoso ou involuntariamente desorientado, forçando o leitor a questionar constantemente o que está sendo relatado. Devido ao seu ponto de vista subjetivo, esse tipo de narrador apresenta eventos, personagens e até mesmo seus próprios pensamentos e emoções de maneiras distorcidas, inconsistentes ou contraditórias.
Como resultado, os leitores navegam por incertezas e são forçados a desafiar suas percepções para chegar às suas próprias conclusões, sendo então envolvidos em uma experiência literária única. Existem, inclusive, diferentes tipos de narradores não confiáveis. O pícaro, por exemplo, é o narrador que tem uma predisposição a exagerar ou embelezar os fatos, hiperbolizando a história. Já o louco não é confiável porque está mentalmente desligado da realidade e o ingênuo geralmente tem suas habilidades narrativas afetadas pela inexperiência ou por sua idade. Por fim, o mentiroso é aquele que intencionalmente engana o leitor, inventando ou alterando os fatos para alcançar um resultado desejado.

Ao longo do tempo, inúmeros autores utilizaram o conceito de narrador não confiável para enriquecer suas histórias. O nascimento do romance moderno no século XVIII proporcionou um terreno fértil para esse tipo de dispositivo, já que a ascensão de narrativas em primeira pessoa amalgamou o narrador com o personagem, resultando em histórias onde a percepção do protagonista influencia significativamente o que está sendo contado. Um dos primeiros exemplos de narrador não confiável aparece em Moll Flanders de Daniel Defoe, livro em que a personagem principal exagera sua história de vida para conseguir casar com homens ricos e herdar seu dinheiro.
Com o tempo, o dispositivo foi se tornando cada vez mais complexo, dialogando com mudanças na natureza da narrativa e com diferentes tradições literárias. No século XIX, por exemplo, várias obras literárias utilizaram narradores não confiáveis para explorar a psique humana, assim como estados mentais, delírios e autoenganos. É o caso do conto “O Coração Delator” de Edgar Allan Poe. Já no Brasil, um dos exemplos mais marcantes aparece no clássico Dom Casmurro de Machado de Assis.
Com a chegada do século XX, o narrador não confiável tornou-se uma presença constante na literatura modernista, aparecendo tanto em obras de Fiódor Dostoiévski quanto em autores que empregam o fluxo de consciência, como James Joyce e Virginia Woolf. Já na era pós-moderna, autores passaram a utilizar esse conceito para tecer comentários sobre a natureza subjetiva da verdade e as limitações da linguagem.

Embora o termo tenha sido cunhado apenas em 1961 pelo crítico literário Wayne C. Booth, há muito que o narrador confiável é uma presença constante na história da literatura, sendo responsável por destacar a complexidade da percepção humana, a subjetividade inerente à verdade e a própria construção das memórias. Aqui estão 6 exemplos de livros da Caveira com esse tipo de narrador.
Pedra Papel Tesoura
Casados há uma década, Adam e Amelia Wright enfrentam uma das piores crises de seu casamento. Entre ressentimentos e brigas constantes, o casal decide dar uma última chance ao relacionamento com uma viagem para as Highlands na Escócia. No entanto, o retiro é drasticamente perturbado quando o casal acaba preso em uma tempestade de neve, a qual revela segredos, mentiras e traições. Essa é a premissa de Pedra Papel Tesoura da escritora Alice Feeney, um dos primeiros títulos do projeto E.L.A.S – Especialistas Literárias na Anatomia do Suspense, que integra a marca Crime Scene Fiction da DarkSide® Books.

Abordando temas psicológicos profundos, Pedra Papel Tesoura é marcado por três narradores não confiáveis: Adam, Amelia e uma terceira pessoa que aparece posteriormente na história, de forma que somos influenciados pela visão que cada personagem tem dos fatos, de si mesmo, dos outros ao seu redor e de toda a história que está sendo compartilhada. Uma leitura atmosférica, Pedra Papel Tesoura mantém o suspense até a última página, utilizando seus narradores não confiáveis para construir uma história enigmática e cheia de reviravoltas.
Dele & Dela
Será que somos todos narradores não confiáveis em nossas próprias vidas? Essa é a pergunta que ecoa em Dele & Dela, segundo romance de Alice Feeney a fazer parte do projeto E.L.A.S. Na história, acompanhamos Anna Andrews, uma repórter que precisa voltar para a pacata cidade de Blackdown, onde morou anos atrás, para cobrir a história de um brutal assassinato. Enquanto Anna mal pode esperar para ir embora, o detetive Jack Harper não sai da cidade há anos e tem seu mundo virado de cabeça para baixo com o retorno da repórter, com quem teve um relacionamento anos atrás.

Para piorar: os dois possuem profundas conexões com a mulher assassinada, as quais não podem ser reveladas. Um thriller psicologicamente astuto que explora temas como segredos de família e relacionamentos tóxicos entre adolescentes, Dele & Dela é narrado por personagens bem delineados, mas nem um pouco confiáveis, que o tempo todo tentam fugir da verdade e garantir que ela permaneça enterrada.
Rebecca
Publicado em 1938, Rebecca conta a história de uma jovem que parece viver um conto de fadas ao se casar com o viúvo Maxim de Winter. No entanto, quando se muda para a residência ancestral do marido, a imponente Manderley, a nova sra. de Winter percebe que ainda paira no ar a presença da falecida primeira esposa, Rebecca.

Escrito por Daphne du Maurier, Rebecca é narrado em primeira pessoa pela própria Sra. de Winter, que se mostra não confiável devido ao seu falso entendimento da sinistra situação ao seu redor. Enquanto tenta desvendar o passado e descobrir o que aconteceu com sua antecessora, a narradora é constantemente influenciada por sua subjetividade, suas especulações e até mesmo pelo seu ciúme. Contudo, tudo muda quanto a verdade é finalmente revelada.
Psicopata Americano
Jovem, bonito, rico e bem-educado, Patrick Bateman tem uma vida invejável. Ele usa roupas de grife, trabalha em um banco de investimentos na movimentada Wall Street e divide suas noites entre jantares, boates e festas particulares. Contudo, por trás da fachada de perfeição e normalidade, Bateman esconde o instinto de um serial killer sádico e impiedoso. Esse é o ponto de partida de Psicopata Americano, obra de Bret Easton Ellis que nos leva pelos dias e noites do jovem investidor, nos dando acesso aos seus pensamentos nefastos e crimes abjetos.

Publicado em 1991, o livro é narrado pelo próprio Patrick Bateman que se mostra um narrador pouco confiável. Em Psicopata Americano, Ellis confunde habilmente a linha entre a realidade e a ilusão, fazendo com que os leitores questionem se os horrores descritos por Bateman são reais ou apenas fruto de sua insanidade. O foco excessivo em detalhes superficiais, assim como a apresentação de detalhes conflitantes e relatos contraditórios, faz com que nunca tenhamos certeza da autenticidade das experiências descritas pelo narrador.
O Morro dos Ventos Uivantes
Originalmente publicado em 1847, O Morro dos Ventos Uivantes é um dos romances mais arrebatadores da literatura. Combinando paixão e trevas, o livro de Emily Brontë é uma história fantasmagórica de obsessão, vingança e paixões intensas que acompanha o vínculo devastador estabelecido entre Heathcliff e Catherine Earnshaw. Além disso, O Morro dos Ventos Uivantes possui dois narradores principais que não são lá muito confiáveis, nos fazendo questionar as informações que estamos recebendo.

O primeiro deles é John Lockwood, personagem que não apenas faz suposições imprecisas como também não está presente na maioria dos eventos que relata, compilando e registrando o que escuta de Nelly Dean, uma funcionária da família Earnshaw. Posteriormente, quem assume a narração é a própria Nelly, que possui conhecimento íntimo dos eventos. No entanto, ela também não possui muita credibilidade, já que está emocionalmente envolvida com a história e com alguns personagens, o que leva a um relato tendencioso dos eventos.
A Volta do Parafuso
Uma das maiores histórias de fantasmas já escritas, A Volta do Parafuso narra as desconcertantes experiências de uma mulher contratada para educar e proteger duas crianças órfãs na isolada propriedade de Bly. Contudo, logo ela passa a ser aterrorizada por eventos sinistros e aparições fantasmagóricas. Escrito como um manuscrito de memórias da governanta, A Volta do Parafuso é uma história cheia de ambiguidades, o que faz com que o leitor questione a veracidade da narrativa.

Para começo de conversa, a história chega até nós por meio de um narrador anônimo, o qual a escuta durante uma festa de Natal quando alguns amigos se reúnem em volta de uma fogueira. Além disso, a própria governanta é amplamente considerada uma narradora não confiável devido à sua interpretação subjetiva dos eventos e sua possível instabilidade mental. Seu relato também é cheio de inconsistências, como quando descreve a aparição dos fantasmas e o comportamento das crianças, o que acaba levantando questões sobre a sua percepção dos fatos.
Em quem podemos confiar?
Narradores não confiáveis não são populares apenas na literatura. Eles também habitam o cinema! Basta lembrar de adaptações cinematográficas como Clube da Luta, Forrest Gump e Garota Exemplar, por exemplo. Já Amnésia do diretor Christopher Nolan nos leva por uma jornada alucinante em que o personagem principal sofre de amnésia anterógrada, o que não apenas o torna incapaz de formar novas memórias, como oferece uma perspectiva pouco confiável dos eventos, os quais são apresentados de forma não-linear.

Outro longa que também utiliza o dispositivo é Cisne Negro do cineasta Darren Aronofsky, o qual acompanha a busca implacável de uma bailarina por perfeição. No filme, somos constantemente influenciados pela percepção pouco confiável da protagonista, a qual constantemente confunde as linhas entre a ilusão e a verdade. Já em Os Suspeitos, longa dirigido por Bryan Singer, a história é narrada pela perspectiva de Roger “Verbal” Kint, o único sobrevivente de uma explosão que provocou dezenas de mortes em um cais. Interrogado pela polícia, ele relata os eventos que o levaram até o local do crime junto de mais quatro criminosos. A partir disso, o filme utiliza flashbacks e a própria narração de Kint para contar o que aconteceu, mostrando que talvez as coisas sejam muito mais complexas do que parecem ser.
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